terça-feira, 18 de dezembro de 2012

SÉRIE: ELA E JOÃO-VICTOR


MEUS SORRISOS SÃO SEUS

Decidiu não mais brincar com os sentimentos alheios.  Neste tórrido dia, ela se encontra consigo mesma numa esquina e descobre que possui força suficiente para abandonar suas inseguranças. Visualiza, no instante seguinte, a sua frente, a imagem de João-Victor a esperar um abraço aconchegante. Descobre que é ele e mais ninguém o dono dos seus sorrisos.
Trovejante foi o abraço que ele ganhou. Depois, seguraram um a mão do outro e sentiram a pulsação nas pontas dos dedos. Seus pensamentos, seus olhares eram leves como o vestido que escondia a afabilidade do corpo dela. Tudo estava quente. A Joana Angélica quente. O Shopping Lapa quente. Praça Piedade, também, quente. Todavia, ao redor dos dois era frescor, ventania... Tal balbúrdia era o resmungar do tempo que não se conformava com a obrigação de parar para tornar imortal aquele instante.
A cabeça dele estava desorganizada de tão aliviada. Já não recordava das horas de incerteza e impaciência. Afinal, ela era complicada com as coisas do amor. “Serão traumas?”, perguntava-se. Tentativa em vão era usar da inquirição ou adivinhar com a intuição; ela era demasiado taciturna para revelar qualquer coisa a respeito do passado que escondia sob a poeira das alpercatas. Contudo, “que valor possuía tais indagações se ela já abandonara a parte que a desencaminhava?”, perguntava-se. Malgrado a ausência da razão, o coração de João-Victor bradava com suas conclusões impulsivas: se esteve perto de perdê-la por inteiro, havia o risco de tê-la pela metade. “Os traumas”, ele pensava, “quando corporificados, ocupam de tal modo um espaço no cotidiano que, quando superados, deixa um vazio que necessita imediatamente ser preenchido; ou, a própria superação é a expulsão e o preenchimento concomitante do vazio resultante?”. De todo modo, pensou na possibilidade de curar traumas de afeto com o próprio afeto, e, se houvesse um vazio, já tinha em mente com que preenchê-lo.
Já com ela, os pensamentos não rejeitavam a lógica. Tinha consciência do que havia passado. Fizera-se de complicada como subterfúgio para dele ocultar as cicatrizes de um grande amor que certa feita a arrebatou e que a marcou como ferro e brasa. Sabia mais do que ninguém que o que passou e o resto que ficava já não traziam lucros. Esta constatação é a esquina em que ela o reencontra a esperar um abraço aconchegante que, na verdade, não era para ele, e sim para ela. Se suas complicações eram subterfúgios, era preciso rejeitá-las e encontrar nele a saída de emergência para enterrar de vez um passado sem sentido. Trauma, não; assuntos não resolvidos, sim. E resolveria cedendo, dando a oportunidade ao outro de preenche uma vazio que ficou. Para isso, era preciso permitir que João-Victor fosse dono dos seus sorrisos.

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

CONTO: HOMEM DE CARNE, OSSOS E TRAUMAS



Não parecia atitude de homem maduro, mas acabei pedindo-a que esperasse por mais algum tempo. Havia nos conhecido há cerca de seis meses e ela ansiava pelo contato decisivo. Dizendo que namoro sem sexo é amizade, ela via o encontro entre nossos corpos como a consumação, o aprofundamento dos nossos laços, o fechamento do contrato entre nossas almas.
Todo o tempo solicitado se passara e as recordações que me atormentavam persistiam. Suas presenças eram como um objeto com arestas afiadíssimas na garganta dum ruminante. Eu me colocava a ingeri-las e regurgitá-las para novamente ingeri-las e regurgitá-las, abrindo feridas incuráveis ao longo de toda a trajetória. Este ciclo compulsório, de remoer recordações, de permitir que sensações pretéritas invadam e determinem o presente, tornando-me irascível ao ponto de não mais conseguir discernir quão realmente eram relevantes ao homem que me tornei, era pernicioso e um sólido entrave a felicidade.
Na noite do encontro, todos esses raciocínios acompanharam-me até a porta do quarto do hotel e lá permaneceram privados da intercessão no que iria acontecer. Ryouji se despia pouco a pouco, exibindo seu corpo já mergulhado no desejo de dominar e ser dominada; despia seus trajes formais, mas, lentamente, era acolhida pelas vestes da sensualidade que nos alcançava pela intensa libido. E eu sentia aquela energia insuflar em meus lábios um adocicado sem semelhanças com tudo que eu já experimentara e, que, todavia, não me privava da sua face dolorosa. Era dúbio aquele instante. Estava numa mistura de amor e dor.
Nesse campo de batalhas entre forças amigas e oponentes, num movimento incisivo, as lembranças invadem o quarto fazendo dissipar toda aquela esfera delirante. O corpo de Ryouji, meigo como duma bailarina, transformou-se em rudeza. Era como se tudo perdesse visibilidade, ou cedesse espaço à existência daquelas lembranças de transgressões que impuseram um precoce limiar a minha infância. Cheguei à conclusão que não havia superado as séries de abusos sexuais que feriram meu corpo e meu espírito.
Naquele instante, Ryouji percebia a estranha mudança de meu estado emocional através da configuração da tez de minha face. Eu me contorcia e chorava já não percebendo os olhares da senhorita que já se sentia abandonada. Sem entender uma vírgula do que se passava, pergunta-me:
— Que há de tão abominável em meu corpo?
— Não há nenhum caráter execrável em teu corpo que não estava presente em outros corpos que intentaram proporcionar-me a alegria de sentir a intensidade do contato entre dois seres em chamas. Agora, o que vês é um homem de carne, ossos e um amontoado de traumas que a vida tratou de imprimir em seu corpo; marcas indestrutíveis, somente, superáveis. Pelo que estais vendo, estou aquém de transpô-las.
Naquele dia, já com um acúmulo de tantas tentativas frustradas, eu descobri que para amar é necessário está suficientemente forte para se entregar de corpo e alma, e que há pessoas que vivem uma vida e morrem sem ter alcançado a fortaleza necessária para ser feliz ao lado de outrem.

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Khronos, Kairos e o fim do mundo



NOTA EXPLICATIVA: Na teologia cristã, em síntese pode-se dizer que khronos, é o "tempo humano", é medido em anos, dias, horas e suas divisões. Enquanto o termo kairos, que descreve "o tempo de Deus", não pode ser medido, pois "para o Senhor um dia é como mil anos e mil anos como um dia”.

            Khronos perguntou a Kairos o que seria da humanidade após o vigésimo primeiro dia, do décimo segundo mês, do décimo segundo ano do terceiro milênio. Estava preocupado, com um nível de ansiedade tão intensa que o impedia de fixar seus olhos no olhar do seu interlocutor.
            Kairos, com sua serenidade inabalável põe sua mão esquerda sobre o obro direito de Khronos e solicita-lhe calma. Olha nos seus olhos e, em seguida, inclinou para contemplar a imensidão do universo e perguntou:
            — Do que tens medo?
            — Da destruição — respondeu.
            — Quem és tu?
            — Sou Khronos, o tempo dos homens.
            — Sabes ao meu respeito?
            — Ora, Tu és Kairos, o tempo da divindade, do inesperado, o imensurável...
            — Então — respondeu Kairos em tom consolador —, sou o tempo do Deus, da oportunidade, do inusitado... Em meus registros estão o começo, o meio e a infinidade. Também tenho como atributo a incomensurabilidade. Sou o tempo do todo; e, sendo o todo também imensidade, sou infinito. Destarte, em todas as vezes que os humanos tentaram transformar você, Khronos, em eu, Kairos, foram vencidos pela exaustão e não conseguiram concretizar seus propósitos. Foi o que aconteceu com os Maias. Queriam o conhecimento da extensão do tempo, mas não possuíam um dos atributos necessários para tal: a eternidade.
 

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Uma crítica ao livro “O Pequeno Príncipe” de Saint-Exupéri




Ao ler o décimo quinto capítulo do livro “O Pequeno Príncipe” de Antoine de Saint-Exupéri, eu pensei se haveria alguma relação entre a metodologia do ensino da geografia, vigente na época, e a forma como o autor define a profissão de geógrafo.  Eu suponho que  ele não empreendeu pesquisa alguma quando resolveu inserir um geógrafo em sua narrativa. Sua admiração àquela profissão, que se manifesta através da fala do Pequeno Príncipe, explicita as cicatrizes das traumáticas e agônicas aulas de geografia que o autor presenciou durante sua juventude.
O livro foi escrito e publicado na década de 1940. Nesta época, a geografia e a pesquisa geográfica estavam sobre os auspícios da escola tradicional e da nascente escola neopositivista. Saint-Exupéri estudou em colégio de padre, passou anos experimentando a educação jesuítica, não deve ter conhecido um ensino dócil da disciplina para definir o geógrafo como “um especialista que sabe onde se encontra os mares, os rios, as cidades, as montanhas, os desertos”. Tal definição denota a concepção duma geografia enciclopédica e não científica.
Ele comete outro vacilo quando não considera o geógrafo como explorador. Não sabia ele que a geografia jamais desprezara a pesquisa de campo? A geografia nasce como uma ciência da exploração. Se não fosse a necessidade do homem de conhecer seu habitat, eu presumo que jamais existiria geografia, basta recordarmos as figuras de Richard Burton, Alexandre de Humboldt e as dos maiores exploradores geógrafos da história.
Mas o principal, que eu considero quase uma profanação, diz respeito à visão que o autor tem do objeto de estudo da geografia. Vejamos:
“Os livros de geografia” — palavra do seu personagem — “são os mais exatos. Nunca ficam ultrapassados. É muito raro que uma montanha mude de lugar. É muito raro um oceano secar. Nós escrevemos coisas eternas”.
Para final de conversa, nem naquela época eram estes os objetos da geografia. Depois disso, de fato, ele não pesquisou nada sobre a geografia antes de inserir um geógrafo em sua narrativa. E mais: o que sobressaiu no momento da concepção foram as lembranças das aulas no Colégio Jesuíta. O autor não entende o espaço geográfico como uma realidade que surge de um processo e se modifica ao longo de um processo. Esse processo é o processo da produção e reprodução da existência humana através do trabalho. Por existir um processo, logo há uma mutabilidade; destarte, não há maneira da geografia, contendo a pretensão de interpretar a realidade, ver os objetos e as relações como dados eternos. A geografia — tanto quanto as outras ciências — sabe que não há nada imutável; sabe, também, que o próprio nada, para ser constatado, depende da relação entre o vazio e o existir.
Para concluir, eu não utilizaria o livro em minhas aulas de geografia. Todavia, eu advirto que o livro possui inúmeras potencialidades e deve ser lido por todos os seres de razão.

terça-feira, 17 de abril de 2012

Tia Hermenegilda


Quando o mal passa e cessa o sofrimento, risos, zombarias atravessam a lembrança dos momentos  de aflição. Todavia, nem sempre, assim, é. Na circunstância a qual me encontro, sofro, perco sono e matuto como se, ainda, vivesse aquelas épocas perturbadoras. E vivo!
Era fevereiro de 2002 o primeiro mês letivo daquele ano. Numa quinta feira, tive minha primeira aula de geografia. Na verdade, primeira aula de geografia dissociada da disciplina história, pois nos anos anteriores houvera cursado uma antiga disciplina denominada de estudos sociais. Lembro-me, como hoje, minha professora a entrar na sala com recatadas vestimentas, um livro velho e um caderninho surrado, daquele em que realizáramos os deveres de casa no fundamental I. Com um timbre metálico, apresentou-nos o programa da matéria e as justificativas do fato de não adotar o livro distribuído pelo governo (Geografia: o homem e o espaço, de Elian Alabi Lucci) e utilizar outro: Geografia Geral de Haroldo de Azevedo. Segundo ela, este era o melhor para se trabalhar.
O livro, o de Haroldo, teve suas primeiras edições na passagem dos anos trinta aos quarenta do século XX, quando surgiram os primeiros geógrafos acadêmicos no Brasil. Aparentemente, era atrativo as crianças devido seu formato compacto e ter uma capa colorida e animada; mas, no decorrer das aulas, experimentamos uma hecatombe, onde poucos conseguiram sobreviver. Ainda guardo o trivial conceito de ilha e o quanto tive que reescrevê-lo nos meus quatro anos ginasiais no Colégio Estadual Antonio Carlos Magalhães, em Paramirim, interior da Bahia. Tia Hermenegilda – assim, chamávamo-la – fazia-me ter repulsão a geografia. Graças a Deus eu tinha uma bicicleta: as longas viagens que fazíamos despertavam a curiosidade que a sala de aula e uma professora sem formação não conseguiam incitar. 
Há poucos dias, dez anos após aquela experiência penitencial, encontrei-me com o histórico livro do eminente professor Haroldo de Azevedo. Naquele instante, num súbito arremesso, foi levado por reminiscências aos primórdios do meu amor pela geografia. Nessas lembranças repentinas estava a sutil pessoa de “Tia Gilda”. Ela, que malgrado sua doçura, foi ‘iconizada’, tornada personificação, em meus sentimentos, das deficiências do secular ensino da geografia. Nunca antes um fato aparentemente banal marcara tanto a minha vida como aquele encontro. Num pequeno sebo, na Estação da Lapa, a um real, apenas, estava à lendária obra que disseminou o conhecimento geográfico e seus ódios (e, por que não amores?) a milhões de brasileiros.
Hoje, graduando em geografia, tenho a oportunidade de entender a complexidade das paisagens que me fascinavam em minhas viagens de bicicleta. Mais que isso: entendo, inclusive, a história da geografia, seus problemas e suas possibilidades; também, descobrir que o método tia Hermenegilda refletia padrões culturais hegemônicos consequentes de fatores históricos, políticos e ideológicos unidos para a manutenção/organização dessa arcaica superestrutura. Ter consciência disto é se engajar numa luta secular; é se inserir como fator ponderável na evolução do pensamento geográfico. Nós, estudante de graduação em geografia, somos fatores ponderáveis na evolução do pensamento geográfico e precisamos assumir nosso posto.
Expressando o velho ditado em novas palavras, não há nada mais agradável que rir de acontecimentos desesperantes após dias que se passaram. Lógico, quando permitem essas proezas... Ninguém sorrir em missa de sétimo dia. E, professor que se preze não sorrir diante de recordações que questionem a prática do ensino ao qual se dedicam. Não sendo fato pretérito, é impossível sorrir. É evidente que hoje nenhum professor (eu acho) utiliza Haroldo de Azevedo em suas aulas; mas, isso não alivia as dores dum ensino onde o livro didático é um instrumento de alienação e opressão. Abduzindo novos instrumentos e ganhando nova configuração, tal prática de ensino se reproduz; contudo, é incapaz de esconder a sua essência tradicional e apolítica. 
Concluo afirmando que não é exagero inquietar-me com este caso. Pelo contrário: a insônia é minha fiel companheira.

Salvador, 17 de abril de 2012
Ricardo de Oliveira