Quando o mal
passa e cessa o sofrimento, risos, zombarias atravessam a lembrança dos
momentos de aflição. Todavia, nem sempre, assim, é. Na circunstância a
qual me encontro, sofro, perco sono e matuto como se, ainda, vivesse aquelas
épocas perturbadoras. E vivo!
Era fevereiro de 2002 o
primeiro mês letivo daquele ano. Numa quinta feira, tive minha primeira aula de
geografia. Na verdade, primeira aula de geografia dissociada da disciplina
história, pois nos anos anteriores houvera cursado uma antiga disciplina denominada
de estudos sociais. Lembro-me, como hoje, minha professora a entrar na sala com
recatadas vestimentas, um livro velho e um caderninho surrado, daquele em que realizáramos
os deveres de casa no fundamental I. Com um timbre metálico, apresentou-nos o
programa da matéria e as justificativas do fato de não adotar o livro distribuído
pelo governo (Geografia: o homem e o espaço, de Elian Alabi Lucci) e utilizar
outro: Geografia Geral de Haroldo de Azevedo. Segundo ela, este era o melhor
para se trabalhar.
O livro, o de Haroldo,
teve suas primeiras edições na passagem dos anos trinta aos quarenta do século XX,
quando surgiram os primeiros geógrafos acadêmicos no Brasil. Aparentemente, era
atrativo as crianças devido seu formato compacto e ter uma capa colorida e
animada; mas, no decorrer das aulas, experimentamos uma hecatombe, onde poucos
conseguiram sobreviver. Ainda guardo o trivial conceito de ilha e o quanto tive
que reescrevê-lo nos meus quatro anos ginasiais no Colégio Estadual Antonio
Carlos Magalhães, em Paramirim, interior da Bahia. Tia Hermenegilda – assim, chamávamo-la
– fazia-me ter repulsão a geografia. Graças a Deus eu tinha uma bicicleta: as
longas viagens que fazíamos despertavam a curiosidade que a sala de aula e uma
professora sem formação não conseguiam incitar.
Há poucos dias, dez anos após aquela experiência penitencial, encontrei-me com
o histórico livro do eminente professor Haroldo de Azevedo. Naquele instante,
num súbito arremesso, foi levado por reminiscências aos primórdios do meu amor
pela geografia. Nessas lembranças repentinas estava a sutil pessoa de “Tia Gilda”.
Ela, que malgrado sua doçura, foi ‘iconizada’,
tornada personificação, em meus sentimentos, das deficiências do secular ensino
da geografia. Nunca antes um fato aparentemente banal marcara tanto a minha
vida como aquele encontro. Num pequeno sebo, na Estação da Lapa, a um real,
apenas, estava à lendária obra que disseminou o conhecimento geográfico e seus
ódios (e, por que não amores?) a milhões de brasileiros.
Hoje, graduando em
geografia, tenho a oportunidade de entender a complexidade das paisagens que me
fascinavam em minhas viagens de bicicleta. Mais que isso: entendo, inclusive, a
história da geografia, seus problemas e suas possibilidades; também, descobrir
que o método tia Hermenegilda refletia padrões culturais hegemônicos consequentes
de fatores históricos, políticos e ideológicos unidos para a
manutenção/organização dessa arcaica superestrutura. Ter consciência disto é se
engajar numa luta secular; é se inserir como fator ponderável na evolução do
pensamento geográfico. Nós, estudante de graduação em geografia, somos fatores
ponderáveis na evolução do pensamento geográfico e precisamos assumir nosso
posto.
Expressando o velho
ditado em novas palavras, não há nada mais agradável que rir de acontecimentos desesperantes
após dias que se passaram. Lógico, quando permitem essas proezas... Ninguém
sorrir em missa de sétimo dia. E, professor que se preze não sorrir diante de recordações
que questionem a prática do ensino ao qual se dedicam. Não sendo fato
pretérito, é impossível sorrir. É evidente que hoje nenhum professor (eu acho)
utiliza Haroldo de Azevedo em suas aulas; mas, isso não alivia as dores dum ensino
onde o livro didático é um instrumento de alienação e opressão. Abduzindo novos instrumentos e ganhando nova configuração, tal
prática de ensino se reproduz; contudo, é incapaz de esconder a sua essência tradicional
e apolítica.
Concluo afirmando que
não é exagero inquietar-me com este caso. Pelo contrário: a insônia é minha
fiel companheira.
Salvador, 17 de
abril de 2012
Ricardo de Oliveira