sexta-feira, 16 de novembro de 2012

CONTO: HOMEM DE CARNE, OSSOS E TRAUMAS



Não parecia atitude de homem maduro, mas acabei pedindo-a que esperasse por mais algum tempo. Havia nos conhecido há cerca de seis meses e ela ansiava pelo contato decisivo. Dizendo que namoro sem sexo é amizade, ela via o encontro entre nossos corpos como a consumação, o aprofundamento dos nossos laços, o fechamento do contrato entre nossas almas.
Todo o tempo solicitado se passara e as recordações que me atormentavam persistiam. Suas presenças eram como um objeto com arestas afiadíssimas na garganta dum ruminante. Eu me colocava a ingeri-las e regurgitá-las para novamente ingeri-las e regurgitá-las, abrindo feridas incuráveis ao longo de toda a trajetória. Este ciclo compulsório, de remoer recordações, de permitir que sensações pretéritas invadam e determinem o presente, tornando-me irascível ao ponto de não mais conseguir discernir quão realmente eram relevantes ao homem que me tornei, era pernicioso e um sólido entrave a felicidade.
Na noite do encontro, todos esses raciocínios acompanharam-me até a porta do quarto do hotel e lá permaneceram privados da intercessão no que iria acontecer. Ryouji se despia pouco a pouco, exibindo seu corpo já mergulhado no desejo de dominar e ser dominada; despia seus trajes formais, mas, lentamente, era acolhida pelas vestes da sensualidade que nos alcançava pela intensa libido. E eu sentia aquela energia insuflar em meus lábios um adocicado sem semelhanças com tudo que eu já experimentara e, que, todavia, não me privava da sua face dolorosa. Era dúbio aquele instante. Estava numa mistura de amor e dor.
Nesse campo de batalhas entre forças amigas e oponentes, num movimento incisivo, as lembranças invadem o quarto fazendo dissipar toda aquela esfera delirante. O corpo de Ryouji, meigo como duma bailarina, transformou-se em rudeza. Era como se tudo perdesse visibilidade, ou cedesse espaço à existência daquelas lembranças de transgressões que impuseram um precoce limiar a minha infância. Cheguei à conclusão que não havia superado as séries de abusos sexuais que feriram meu corpo e meu espírito.
Naquele instante, Ryouji percebia a estranha mudança de meu estado emocional através da configuração da tez de minha face. Eu me contorcia e chorava já não percebendo os olhares da senhorita que já se sentia abandonada. Sem entender uma vírgula do que se passava, pergunta-me:
— Que há de tão abominável em meu corpo?
— Não há nenhum caráter execrável em teu corpo que não estava presente em outros corpos que intentaram proporcionar-me a alegria de sentir a intensidade do contato entre dois seres em chamas. Agora, o que vês é um homem de carne, ossos e um amontoado de traumas que a vida tratou de imprimir em seu corpo; marcas indestrutíveis, somente, superáveis. Pelo que estais vendo, estou aquém de transpô-las.
Naquele dia, já com um acúmulo de tantas tentativas frustradas, eu descobri que para amar é necessário está suficientemente forte para se entregar de corpo e alma, e que há pessoas que vivem uma vida e morrem sem ter alcançado a fortaleza necessária para ser feliz ao lado de outrem.

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Khronos, Kairos e o fim do mundo



NOTA EXPLICATIVA: Na teologia cristã, em síntese pode-se dizer que khronos, é o "tempo humano", é medido em anos, dias, horas e suas divisões. Enquanto o termo kairos, que descreve "o tempo de Deus", não pode ser medido, pois "para o Senhor um dia é como mil anos e mil anos como um dia”.

            Khronos perguntou a Kairos o que seria da humanidade após o vigésimo primeiro dia, do décimo segundo mês, do décimo segundo ano do terceiro milênio. Estava preocupado, com um nível de ansiedade tão intensa que o impedia de fixar seus olhos no olhar do seu interlocutor.
            Kairos, com sua serenidade inabalável põe sua mão esquerda sobre o obro direito de Khronos e solicita-lhe calma. Olha nos seus olhos e, em seguida, inclinou para contemplar a imensidão do universo e perguntou:
            — Do que tens medo?
            — Da destruição — respondeu.
            — Quem és tu?
            — Sou Khronos, o tempo dos homens.
            — Sabes ao meu respeito?
            — Ora, Tu és Kairos, o tempo da divindade, do inesperado, o imensurável...
            — Então — respondeu Kairos em tom consolador —, sou o tempo do Deus, da oportunidade, do inusitado... Em meus registros estão o começo, o meio e a infinidade. Também tenho como atributo a incomensurabilidade. Sou o tempo do todo; e, sendo o todo também imensidade, sou infinito. Destarte, em todas as vezes que os humanos tentaram transformar você, Khronos, em eu, Kairos, foram vencidos pela exaustão e não conseguiram concretizar seus propósitos. Foi o que aconteceu com os Maias. Queriam o conhecimento da extensão do tempo, mas não possuíam um dos atributos necessários para tal: a eternidade.
 

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Uma crítica ao livro “O Pequeno Príncipe” de Saint-Exupéri




Ao ler o décimo quinto capítulo do livro “O Pequeno Príncipe” de Antoine de Saint-Exupéri, eu pensei se haveria alguma relação entre a metodologia do ensino da geografia, vigente na época, e a forma como o autor define a profissão de geógrafo.  Eu suponho que  ele não empreendeu pesquisa alguma quando resolveu inserir um geógrafo em sua narrativa. Sua admiração àquela profissão, que se manifesta através da fala do Pequeno Príncipe, explicita as cicatrizes das traumáticas e agônicas aulas de geografia que o autor presenciou durante sua juventude.
O livro foi escrito e publicado na década de 1940. Nesta época, a geografia e a pesquisa geográfica estavam sobre os auspícios da escola tradicional e da nascente escola neopositivista. Saint-Exupéri estudou em colégio de padre, passou anos experimentando a educação jesuítica, não deve ter conhecido um ensino dócil da disciplina para definir o geógrafo como “um especialista que sabe onde se encontra os mares, os rios, as cidades, as montanhas, os desertos”. Tal definição denota a concepção duma geografia enciclopédica e não científica.
Ele comete outro vacilo quando não considera o geógrafo como explorador. Não sabia ele que a geografia jamais desprezara a pesquisa de campo? A geografia nasce como uma ciência da exploração. Se não fosse a necessidade do homem de conhecer seu habitat, eu presumo que jamais existiria geografia, basta recordarmos as figuras de Richard Burton, Alexandre de Humboldt e as dos maiores exploradores geógrafos da história.
Mas o principal, que eu considero quase uma profanação, diz respeito à visão que o autor tem do objeto de estudo da geografia. Vejamos:
“Os livros de geografia” — palavra do seu personagem — “são os mais exatos. Nunca ficam ultrapassados. É muito raro que uma montanha mude de lugar. É muito raro um oceano secar. Nós escrevemos coisas eternas”.
Para final de conversa, nem naquela época eram estes os objetos da geografia. Depois disso, de fato, ele não pesquisou nada sobre a geografia antes de inserir um geógrafo em sua narrativa. E mais: o que sobressaiu no momento da concepção foram as lembranças das aulas no Colégio Jesuíta. O autor não entende o espaço geográfico como uma realidade que surge de um processo e se modifica ao longo de um processo. Esse processo é o processo da produção e reprodução da existência humana através do trabalho. Por existir um processo, logo há uma mutabilidade; destarte, não há maneira da geografia, contendo a pretensão de interpretar a realidade, ver os objetos e as relações como dados eternos. A geografia — tanto quanto as outras ciências — sabe que não há nada imutável; sabe, também, que o próprio nada, para ser constatado, depende da relação entre o vazio e o existir.
Para concluir, eu não utilizaria o livro em minhas aulas de geografia. Todavia, eu advirto que o livro possui inúmeras potencialidades e deve ser lido por todos os seres de razão.